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Uma estória em Almofala!

Atualizado: 6 de ago. de 2020



Na localidade de Almofala, aprisionada no passado das sombras de um inverno vestido de burel, desbravam-se lembranças escritas no Outeiro do Moinho.

Tempos gélidos, em que os regaços se enchiam de amoras silvestres beijadas por réstias de sol. Tempos gélidos, em que anoitecia no rosto do rio Varosa e o luar suspirava nas raízes de urgueira enterradas nas covas do chão. Tempos gélidos, em que o sabor a mel perfumava as flores da carqueja, clareiras ondulantes dos montes.

Numa madrugada por abrir, a linha da vida onde se equilibrava a tia Ana Claudina, quebrou-se. Resistiu à praga das formigas que atacou todas as crianças da aldeia. Resistiu às telhas ancestrais, descobertas no ventre da terra lavrada do Outeiro da Granja. Resistiu a muitas tempestades, muitas luas, mas findou-se numa linha podre, enfraquecida pela velhice.

A família, com as violetas nos olhos, rogou dois homens robustos, mais robustos que os frades do Mosteiro de São João de Tarouca, para irem até à vila buscar um caixão. O corpo tinha que ser velado e enterrado com dignidade.

O tio Zé Dias e o tio Horácio, naquele horizonte enlutado, caminharam durante compridas horas. Segurando o cansaço nos ombros um do outro, lá iam, calcando espinhos nas margens das colinas, resguardadas pelo Santuário de Santa Helena.

Naquele terreno infértil, onde só as silvas criam raízes, aperceberam-se de um barulho estranho. Numa carreirinha, mais parecendo uma carreirinha de lagartas, várias moedas lhes rasgaram sorrisos de felicidade. Uma a uma, as foram apanhando. No total, caídas do céu ou de algum bolso roto, viram-se, inesperadamente, com catorze escudos que lhes encheram as algibeiras. Esfregar as moedas de contentes, não se atreveram, não fossem fundir-se no mesmo ato de magia com que apareceram.

Chegaram lusco fusco à vila de Tarouca. No Mosteiro, ouvia-se no toque das pedras da igreja a memória das rezas, tantas vezes, oradas pelos frades, encomendando as terras férteis a Deus. Caixões, não havia nenhum. Era preciso esperar que a urna fúnebre fosse feita.

Sentados numa taberna, pediram um penalti e mais outro e mais outro... até findarem as moedas, angariadas sem esforço algum. Quando saíram, as pernas já não podiam com eles. Trôpegos, vacilaram sobre os socos até à oficina. Carregaram o caixão e puseram-se a caminho. As pestanas eram mais pesadas que as tábuas que levavam aos ombros. Os pés recusavam-se a apalpar terreno. Decidiram pousar a urna aberta numa barreira e deitaram-se no lençol do luar. (...)

Nessa mesma noite, um grupo de homens com burros e cavalos, carregados de carvão e outros produtos, fugia aos impostos e à fiscalização da guarda. Sim, porque estávamos na era em que qualquer carga tinha que ser paga para ser transportada de um concelho para o outro! Os fugitivos eram contrabandistas e tinham um intermediário que os guiava por caminhos virgens. Tio Zé Constantino ia à frente com pés de lã desbaratando o mato.

Ao aproximar-se da barreira, deparou-se com uma visão perturbadora. Os raios de luar filtravam-se nas carumas dos pinheiros. O cetim do caixão, iluminado, parecia um corpo, ou melhor, uma alma do outro mundo. Ora vinha, ora ia, conforme os raios sucumbiam nele. Alternando com esta emoção dramática, uma cruz de metal resplandecia, tornando aquele cenário mórbido, fantasmagórico e assombrado. Enclausurado neste vai e vem, o tio Zé Constantino deu corda às botas e desatou a correr.

Ao passar pelo grupo, a garganta fechou-se nas palavras de socorro e fez um gesto para voltarem para trás. (...) Obedeceram à ordem e retrocederam a marcha, tremendo todos como varas de amieiro. (...)

Só o tio Zé Constantino sabia o que viu, ou melhor, o que pensou ter visto. Uma alma do outro mundo (...)


In A Alma de um Povo, Celeste Almeida


Celeste Almeida nasceu em Mangualde e reside em Ribolhos, concelho de Castro Daire. Professora do 1º ciclo, aposentada, é escritora, contadora de histórias e colabora na Rádio Limite, com diversos programas culturais, e no jornal Notícias de Castro Daire, com a rubrica Fragmentos de Emoção. É presidente da Associação Flores da Aldeia de Mosteirô, onde lidera um Rancho Folclórico e um grupo de teatro.



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