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Foto do escritorCASA DO PATRIMÓNIO | PNA Castro Daire

O Manel da Capucha e o Búzio

Atualizado: 8 de jun. de 2020

Por Abílio Pereira de Carvalho

Como professor que fui de História e de Português na Escola Preparatória de Castro Daire, sempre preocupado em ligar a História e a Literatura à vida, seleccionei, propositadamente, para leitura o conto de Sophia de Mello Breyner Andresen que tem por título «O Búzio». E qual a razão desta minha escolha? Vejamos alguns excertos desse conto, a fim de melhor podermos estabelecer a ligação que ele tem com o título deste meu registo. Assim:

«Quando eu era pequena, passava às vezes pela praia um velho louco e vagabundo a quem chamavam o Búzio.(...) E o Búzio, demoradamente, desprendia o saco do seu bordão, desatava os cordões, abria o saco e guardava o pão. Depois de novo seguia. Parava debaixo de uma varanda cantando, alto e direito, enquanto o cão farejava o passeio. E na varanda debruçava-se alguém rapidamente, tão rapidamente que o seu rosto nem se mostrava, e atirava-lhe um tostão e dizia:- Vai-te embora, Búzio.(...) O Búzio não possuía nada, como uma árvore não possui nada. Vivia com a terra toda que era ele próprio. A terra era sua mãe e sua mulher, sua casa e sua companhia, sua cama, seu alimento, seu destino e sua vida. Os seus pés descalços pareciam escutar o chão que pisavam (...)».

Após a leitura do conto inteiro, feita  por mim primeiro, em voz alta, e depois pelos alunos, antes de qualquer juízo sobre a arte de bem «escrever e contar», eu perguntava se conheciam alguém no concelho que lhes fazia lembrar o Búzio. E a resposta saía instantaneamente da boca de quase todos eles: «sim, é O Manel da Capucha». Estava atingido o primeiro objectivo da aula. Ligar a literatura à vida real e sabermos que os protagonistas dos contos podiam andar por aí feitos de carne e osso, fora dos livros, pessoas que nos rodeiam, que conhecemos, que falam connosco, que nos cumprimentam e que nos sorriem. A confirmá-lo, conhecido de toda a gente, ali estava o Manel da Capucha. Aquela figura simpática, aquele pedinte andarilho que, de bordão e de capucha, palmilhava, sempre a pé,  a rede de estradas, caminhos, veredas e atalhos que ligavam as aldeias do concelho, descalço ou de sapatos que outros pés tinham servido antes de adquirirem aquela experiência de caminheiros. Dormia em palheiros e vivia do que lhe davam. Em torno dele criou-se um mistério: para uns era «um simples pedinte» para outros «um pobre podre de rico». 

Nunca estendia a mão a ninguém para pedir, mas a todos a estendia para cumprimentar e saudar, tratando as pessoas pelo seu nome. Conhecia toda a gente e toda a gente o conhecia a ele, adultos e crianças, muitas das quais se aconchegaram no seu colo, embrulhadas na sua capucha. E era vê-lo todo sorridente, a embalá-las com afagos e carinhos. Em algumas feiras e romarias cantava à desgarrada e não faltava parceiro que o acompanhasse na cantoria. Trazido às minhas aulas, por esta via, tínhamos agora um conto escrito e dois protagonistas. Um dentro das letras e outro fora delas. O Búzio ficcionado pela Sophia e outro, o Manel da Capucha, conhecido por todos, mas não ficcionado por ninguém. Havia, pois que fazê-lo pela mão de quem o conhecia bem, no âmbito do programa que exigia aos professores ensinarem os alunos a extraírem das narrativas os retratos «físico e moral» dos personagens principais ou secundários. Iniciou-se a tarefa. Primeiro foi estabelecer as diferenças entre os dois. Um cirandava pela praia e vilas ribeirinhas e o outro pelas aldeias serranas, longe do mar.

Abandonámos o Búzio a tocar na praia as castanholas que ele fazia de duas conchas recolhidas na areia e incumbi os meus alunos de irem ao quadro, um de cada vez, escreverem uma frase sobre o Manel da Capucha. E desfiaram-se as contas de um rosário: é um velho; é um pobre; pede na vila e nas aldeias; é meio careca; não se penteia; tem barba feia; tem defeitos no pescoço; cheira mal; tem roupa suja; usa uma capucha velha; não toma banho; tem sapatos rotos; anda muito direito; tem um bornal; às vezes leva um pau; é simpático; pegou-me ao colo uma vez; sorri para toda a gente. Eu gosto dele. Eu não gosto dele, etc. etc.

Pronto. Havia material bastante para fazermos um texto colectivo, um conto novo em que o Manel da Capucha seria a figura principal. E que belo conto nos saiu! E que belo retrato «físico e moral» ficou espelhado nas linhas daquele texto que teve o Búzio como pretexto...

(Adaptado do texto "O Manel da Capucha", escrito e publicado pelo Professor Abílio Pereira de Carvalho, no seu site TRILHOS SERRANOS, no ano de 2014)

Abílio Pereira de Carvalho nasceu a 10 de Junho de 1939 na povoação de Cujó, concelho de Castro Daire. Licenciou-se em História. Aos 20 anos de idade embarcou para Moçambique, donde regressou em 1976. Conciliando o exercício docente com a investigação voltada para a História Local, colaborou em diferentes órgãos da imprensa regional e publicou, em crónicas e em livros, os resultados da sua investigação, tendo  dezenas de obras publicadas. 


O Búzio - Homero - Contos Exemplares, de Sophia de Mello Breyner Andresen, AQUI.


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